Os caminhos da Cracol?ndia, a maior feira de drogas do Brasil
H¨¢ 25 anos, S?o Paulo combate sem sucesso seu maior foco urbano de consumo de crack. Uma megaopera??o policial recuperou em 2022 o territ¨®rio e dispersou os usu¨¢rios pelo centro. O uso da for?a reavivou o debate entre o tratamento obrigat¨®rio e a redu??o de danos
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S?o nove da noite de um s¨¢bado e chove em S?o Paulo. As dezenas de milhares de pessoas que vivem e dormem na rua aproveitam as pontes e t¨²neis para se proteger. Embora o ver?o se aproxime, este novembro ¨¦ especialmente frio. Sob a chuva, o Minhoc?o serpenteia pelo centro como uma grande lombriga: ¨¦ o Elevado Presidente Jo?o Goulart, uma via expressa sobre pilares de concreto, constru¨ªda ¨¤s pressas para ligar pontos, sem olhar para o que acontece debaixo. Hoje, na altura da rua Helvetia, seu piso ¨¦ o teto para umas trezentas pessoas que se acotovelam compartilhando o espa?o entre cobertores cinzas, quase sem deixar vazios. A maioria delas est¨¢ acordada e sentada. Algumas deitadas, outras paradas em p¨¦ ou dan?ando. V¨¢rias conversam entre si. Outras est?o sozinhas. H¨¢ poucas mulheres e nenhuma crian?a.
Os que seguram um tubinho comprido e fino numa m?o o levam ¨¤ boca e aspiram, entre os cliques do isqueiro na outra. A ¡°coca¨ªna dos pobres¡± faz um barulho ¡ª crack ¡ª ao ser aquecida. S?o pedras esbranqui?adas que resultam de dissolver coca¨ªna em p¨® e bicarbonato de s¨®dio em ¨¢gua, ferver e deixar secar. O crack ¨¦ coca¨ªna tragada; ao lev¨¢-la diretamente aos pulm?es, o efeito ¨¦ imediato e intenso. ¡°Chamamos de ¡®brisa¡¯ esse momento em que a subst?ncia sobe e voc¨º sente que ¨¦ uma superhero¨ªna capaz de conquistar qualquer coisa. Nem percebe que est¨¢ num lugar imundo¡±, conta uma antiga usu¨¢ria. A sensa??o ¨¦ curta, dura dez minutos, e cada dose custa cinco reais. Mas nem todos que est?o na aglomera??o consomem crack, ou nem sempre: alguns simplesmente est?o por ali, e muitos recorrem ¨¤ cacha?a barata em garrafas de pl¨¢stico para enfrentar o frio da noite.
Duas patrulhas com agentes da Guarda Civil Metropolitana (GCM), apoiados eventualmente pela Pol¨ªcia Militar, vigiam esse grupo 24 horas por dia. ? um dos peda?os da desmembrada Cracol?ndia, a maior feira livre de drogas de S?o Paulo, que se instalou definitivamente no centro h¨¢ quase 25 anos.
De meca do cinema a terra do crack
Antes da Cracol?ndia, os quarteir?es ao redor da esta??o ferrovi¨¢ria da Luz eram conhecidos como Boca do Lixo. Um nome depreciativo que se popularizou nas se??es policiais da imprensa dos anos cinquenta pela presen?a de prostitui??o barata e delinqu¨ºncia. Mas a zona de passagem de tantos viajantes n?o era conhecida apenas por isso: a partir dos anos vinte, a boa localiza??o do primeiro bairro planejado de S?o Paulo atraiu empresas cinematogr¨¢ficas como Paramount, Fox e Columbia, que se estabeleceram ali. Em 1961, com a inaugura??o do terminal de ?nibus da Luz, que conectava a metr¨®pole com o resto do pa¨ªs, a Boca do Lixo se transformou no maior polo de cinema do Brasil e acabou dando nome a um movimento cinematogr¨¢fico.
Mas esse esplendor de filme durou pouco. Nos anos setenta as empresas e a classe m¨¦dia se mudaram para ¨¢reas mais novas, como a avenida Paulista e o bairro de Higien¨®polis. O embate decisivo, no entanto, s¨® chegou na d¨¦cada de oitenta, quando o terminal rodovi¨¢rio da Luz foi desativado e os hot¨¦is, pens?es e restaurantes que tinham brotado nessa efervesc¨ºncia foram perdendo clientela e baixando os pre?os. A regi?o n?o se esvaziou, mas deixou de ser cuidada. Nessas ruas com nomes t?o pomposos como ¡°do Triunfo¡± restaram aqueles que n?o triunfaram para a sociedade, em uma situa??o cada vez mais prec¨¢ria.
Em 1989, uma nova droga circulava por S?o Paulo. Em dezembro de 1990 a pol¨ªcia apreendeu crack pela primeira vez, na zona leste da cidade. Seu uso era disperso, e s¨® no final dos anos noventa se formou o chamado fluxo, a aglomera??o na rua para consumir. ¡°Fizemos o acompanhamento psiqui¨¢trico do primeiro grupo de usu¨¢rios de crack, 138 pessoas. Mais da metade morreu, mas a maioria por viol¨ºncia.¡± Apesar do ambiente insalubre e t¨®xico, o psiquiatra Ronaldo Laranjeira observa que o maior risco para quem consome no espa?o p¨²blico s?o as v¨¢rias formas de viol¨ºncia a que est?o expostos. Laranjeira ¨¦ especialista em depend¨ºncia qu¨ªmica h¨¢ 40 anos e coordena um levantamento de cenas de uso de droga em capitais do Brasil (conhecido pela sigla Lecuca), da Universidade Federal de S?o Paulo (Unifesp). Segundo os dados do ¨²ltimo levantamento, em junho de 2021, antes da grande opera??o policial de dispers?o de maio de 2022, 1.343 pessoas frequentavam a Cracol?ndia a cada dia. Um n¨²mero relativamente pequeno comparado com os 22 milh?es que habitam a regi?o metropolitana mais populosa da Am¨¦rica.
A Cracol?ndia se instalou na zona degradada junto ¨¤ esta??o da Luz quando o cinema da Boca do Lixo j¨¢ era s¨® uma lembran?a. ¡°O crack era barato e viciante, e chegou a um bairro onde muita gente tinha perdido suas casas e consumia drogas. Disseminou-se rapidamente nesse caldeir?o, temperado com o plano urban¨ªstico de abandono do centro.¡± Assim descreve Roberto Monteiro, o delegado da Pol¨ªcia Civil respons¨¢vel desde 2019 pela regi?o central de S?o Paulo e ¨¤ frente das opera??es policiais da Cracol?ndia. ? um homem de 60 anos, policial ¡ªcomo seu pai¡ª desde os 20. Seu amplo gabinete numa delegacia a poucos quarteir?es do fluxo est¨¢ decorado com fotos em preto e branco de outro centro, o dos grandes edif¨ªcios representativos de arquiteturas imponentes.
Fala no passado quando se refere a um dos maiores desafios que enfrenta no comando da seguran?a p¨²blica na grande zona central, onde vivem mais de 400.000 pessoas e por onde dois milh?es passam diariamente: acabar com a Cracol?ndia. ¡°N¨®s nos apoiamos em tr¨ºs pilares: repress?o ao tr¨¢fico de drogas, assist¨ºncia social e de sa¨²de p¨²blica, e reurbaniza??o¡±. A opera??o policial que ele dirige se chama Caronte, como o barqueiro da mitologia grega que leva as almas dos rec¨¦m-falecidos para serem julgadas e terem decidido o seu lugar de descanso.
A Opera??o Caronte come?ou em junho de 2021. ¡°Come?amos com um trabalho de intelig¨ºncia e investiga??o. Infiltramos policiais entre os narcotraficantes, dependentes e travessias, que s?o os que transportam carro?as com ferro-velho, mas tamb¨¦m com droga e pessoas retalhadas ap¨®s serem assassinadas no ¡®tribunal do crime¡¯, aqui¡±, diz, apontando numa foto o edif¨ªcio mais emblem¨¢tico de um cruzamento da Cracol?ndia.
Encerradas as primeiras etapas das investiga??es, na madrugada de 11 de maio a pol¨ªcia p?s m?os ¨¤ obra e come?ou a grande opera??o para dispersar o fluxo, instalado fazia um m¨ºs na pra?a Princesa Isabel, a 500 metros da sua localiza??o tradicional. ¡°Detivemos v¨¢rios l¨ªderes do PCC.¡± S?o as siglas do Primeiro Comando da Capital, a principal organiza??o criminal do Brasil, que domina o tr¨¢fico de drogas na Cracol?ndia e, at¨¦ recentemente, a tinha como seu territ¨®rio. Quatro quarteir?es onde se vendia crack em barracas, em plena luz do dia, como se vende fruta em qualquer feira livre de bairro.
Desde o in¨ªcio da megaopera??o, a pol¨ªcia prendeu 166 pessoas, e os usu¨¢rios que continuam na rua n?o voltaram a se concentrar em um s¨® lugar. A dispers?o ¨¦ a estrat¨¦gia. ¡°Os pequenos grupos s?o mais perme¨¢veis ¨¤ repress?o ao narcotr¨¢fico e ¨¤s a??es de sa¨²de p¨²blica.¡± Segundo a pol¨ªcia, depois de suas interven??es, a quantidade de usu¨¢rios na rua diminuiu drasticamente.
N?o opinam o mesmo alguns pesquisadores do Labcidade, o laborat¨®rio de espa?o p¨²blico e direito ¨¤ cidade da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de S?o Paulo (FAU-USP), que questionam os dados policiais. ¡°Eles n?o t¨ºm metodologia de pesquisa e agora ¨¦ imposs¨ªvel quantificar os usu¨¢rios, porque est?o circulando constantemente¡±, afirma Alu¨ªzio Marinho, respons¨¢vel por um mapa-den¨²ncia que ilustra onde foram parar as pessoas que a pol¨ªcia dispersou. ¡°Eles s¨® contam o fluxo da rua Helvetia na altura do Minhoc?o, n?o os outros lugares onde se instalou. N¨®s contamos 16 mini-Cracol?ndias.¡±
Atualmente a pol¨ªcia foca em responsabilizar criminalmente o uso de drogas. Isto ¨¦ justamente o mais pol¨ºmico, como explica a advogada Cecilia Galicio. ¡°O principal problema ¨¦ tratar uma situa??o de sa¨²de p¨²blica com for?as de seguran?a. A pol¨ªcia deve se dedicar ¨¤ intelig¨ºncia e combate ao narcotr¨¢fico, n?o a intervir junto aos usu¨¢rios.¡± Cecilia ¨¦ vice-presidenta do Conselho Municipal de Pol¨ªticas P¨²blicas de Drogas e ?lcool (Comuda) do munic¨ªpio de S?o Paulo. ¡°No fluxo h¨¢ uma porcentagem muita baixa de narcotraficantes, mas a repress?o ¨¦ para todos¡±, diz ela, recordando que a ONU tem diretrizes espec¨ªficas de direitos humanos para a pol¨ªtica de drogas. E, embora as conven??es internacionais que estabeleceram sua proibi??o sejam implac¨¢veis, a guerra ¨¤s drogas n?o funciona. ¡°A sociedade internacional percebeu que devemos atuar com sa¨²de p¨²blica e n?o com viol¨ºncia e repress?o policial¡±, afirma a pesquisadora.
Al¨¦m de suas fun??es oficiais, Cecilia atua como advogada volunt¨¢ria para fiscalizar as atua??es na Cracol?ndia. ¡°Na semana passada a pol¨ªcia deteve 19 pessoas e s¨® apreendeu tr¨ºs pedras de crack e cinco doses de maconha. Seriam no m¨¢ximo sete casos de uso de droga. Foram postas em liberdade com o compromisso de irem ao posto de sa¨²de. Uma van as esperava na porta da delegacia.¡± Alguns grupos de ativistas denunciam que na pr¨¢tica a pol¨ªcia est¨¢ retendo usu¨¢rios por portar um cachimbo ¡ªusado para fumar crack¡ª e obrigando-os a escolher entre tratamento ou pris?o. Uma medida dessas, observa Cecilia, ¨¦ abuso de autoridade. ¡°A lei de entorpecentes do Brasil n?o prev¨º pena privativa de liberdade por consumo¡±, observa. Como membro do conselho municipal para o tema, ela reivindica um conjunto de pol¨ªticas p¨²blicas que atendam ¨¤s peculiaridades dos usu¨¢rios, inclusive dos que continuam na rua. ¡°Vamos propor um espa?o de consumo seguro de subst?ncias.¡± O conflito legal poderia ser evitado com um foco na sa¨²de p¨²blica e implementando uma pol¨ªtica de exce??o, diz Cecilia. Embora consciente de que dificilmente a conservadora C?mara Municipal de S?o Paulo aprovar¨¢ o projeto, ela confia nas declara??es do respons¨¢vel municipal pelas a??es na Cracol?ndia, que se prop?s a acabar com o uso de drogas em espa?o p¨²blico.
Sair da rua
O edif¨ªcio Matarazzo ¨¦ a sede da prefeitura de S?o Paulo. Olhando das amplas avenidas que o cercam, chama a aten??o o espetacular jardim que aparece em sua cobertura. Um pouco mais abaixo, no 11.o andar, fica o gabinete de Alexis Vargas (PSDB), secret¨¢rio-executivo de Projetos Estrat¨¦gicos da cidade de S?o Paulo e respons¨¢vel pelo programa Reden??o, que visa a acabar com a Cracol?ndia. Sobre a cidade e diante de um mapa que vai do ch?o ao teto, o advogado de 45 anos explica por que, depois de tantas tentativas, ele acredita que esta ser¨¢ a definitiva. ¡°Pela primeira vez temos uma estrat¨¦gia integrada entre Estado e munic¨ªpio, e est?o coordenadas sa¨²de, assist¨ºncia social, seguran?a e limpeza¡±. Diz que o programa foi concebido estudando outros casos do mundo, nenhum t?o desafiador como o de S?o Paulo. ¡°Um centro abandonado em uma cidade enorme e muito desigual; o crack n?o pode ser tratado com metadona, como a hero¨ªna; e temos o PCC, uma multinacional fort¨ªssima do crime organizado.¡± Segundo dados oficiais, no final de 2016 havia 4.000 pessoas na grande feira de drogas a c¨¦u aberto, que faturava 200 milh?es de reais por ano.
O Reden??o come?ou de maneira explosiva em maio de 2017 com uma megaopera??o policial muito violenta e criticada. Dias depois de 900 agentes desmantelarem a Cracol?ndia ¨¤ for?a e de o ent?o prefeito Jo?o Doria (PSDB) assegurar que tinha acabado com ela, o fluxo voltou para o mesmo lugar. Quando Vargas assumiu o cargo, em 2019, promoveu uma guinada nas estrat¨¦gias do programa para acabar com a grande concentra??o de consumidores de drogas perto da esta??o da Luz. ¡°Desta vez est¨¢ funcionando. Que o poder p¨²blico tenha retomado o controle do territ¨®rio ¨¦ uma mudan?a radical.¡± O secret¨¢rio defende a dispers?o, alegando que com ela ¡°¨¦ mais f¨¢cil abordar os usu¨¢rios e oferecer tratamento¡±. Tamb¨¦m se gaba dos bons resultados do Servi?o Integrado de Acolhida Terap¨ºutica (SIAT). Como nos programas de redu??o de danos, o objetivo n?o ¨¦ que os usu¨¢rios deixem totalmente de consumir, mas sim que recuperem o controle da sua vida. Longe do centro da cidade, quatro unidades acolhem os dependentes por um m¨¢ximo de dois anos. Acaba de ser inaugurado o da Penha, com 50 vagas. Os outros tr¨ºs recebiam juntos 119 pessoas em outubro passado.
A 15 quil?metros da Cracol?ndia se encontra o SIAT Hermelino Matarazzo. ¡°Depois que saem daqui, 90% n?o voltam a viver na rua¡±, diz Maria Margarete Alves dos Santos, ao lado de Raquel do Nascimento Machado. As duas mulheres esbanjam energia e otimismo. S?o assistentes sociais e gerentes do centro de acolhida tempor¨¢ria com 60 vagas. ¡°? um trabalho muito desafiador, mas extremamente gratificante.¡± Raquel se emociona ao recordar o que lhe disse recentemente um senhor ao acabar o tratamento: ¡°Obrigado por n?o me abandonar, porque eu sim tinha me abandonado¡±. As assistentes sociais concordam que o trabalho mais importante ¨¦ o primeiro contato, quando abordam os usu¨¢rios na rua. ¡°Eles j¨¢ n?o acreditam em valores, na sociedade, na fam¨ªlia nem em tratamentos. Recuperar isso ¨¦ um processo longo, e o ¨²nico que funciona ¨¦ o v¨ªnculo. A partir da¨ª se pode come?ar a trabalhar¡±, diz Margaret. Argumentam que ¨¦ preciso oferecer a melhor qualidade poss¨ªvel aos moradores de rua, para demonstrar a eles que t¨ºm direitos.
Atualmente, 32 pessoas vivem nos quartos com banheiro privativo do centro de acolhida que antes foi um hotel. Tr¨ºs homens assistem televis?o na sala com poltronas. Sergio fala com sua fam¨ªlia pelo Facebook. ¡°Estou aqui h¨¢ um m¨ºs, larguei o ¨¢lcool e a coca¨ªna, agora s¨® fumo maconha¡±, diz. Edvan chega da rua radiante porque acaba de comprar uma casa. ¡°Pequena, mas ¨¦ minha¡±, conta. E sorri orgulhoso. Completou 37 anos, dois aqui, e n?o quer voltar a dormir ao relento nem a consumir na Cracol?ndia, onde morou durante cinco.
¡°A rua ¨¦ cruel, sobretudo para as mulheres.¡± Priscila recebeu hoje seu primeiro sal¨¢rio. Trabalha como auxiliar de limpeza, mas aos 31 anos tem muita vida pela frente. Gosta de ler e planeja estudar psicologia. ¡°Quero me formar para ajudar a quem passa pelo que eu passei.¡± Ela est¨¢ recuperando o contato com seus tr¨ºs filhos, agora tutelados por familiares, e isso a ajuda a lutar contra a tenta??o de voltar a consumir crack, embora saiba que isso s¨® depende dela. ¡°Minha irm? g¨ºmea ainda mora e se droga debaixo da ponte, mas ningu¨¦m pode ajudar se ela n?o quiser. Nem nas melhores cl¨ªnicas. N?o funciona.¡± Sair do v¨ªcio do crack foi uma luta monumental e teve v¨¢rias reca¨ªdas, conta ela, mas faz dois anos que Priscila n?o usa. ¡°Decidi parar quando estava gr¨¢vida da minha terceira filha, a Jasmin, que est¨¢ com um ano e meio.¡±
At¨¦ 2020 vivia como sua irm?, em uma ¡°mini-Cracol?ndia¡± sob uma ponte perto da favela Jardim Guarani, na periferia paulistana. Mas era no centro que conseguia a melhor droga. ¡°Na Cracol?ndia havia mais variedade e pureza e era muito f¨¢cil ganhar dinheiro.¡± Reconhece que tinha medo de andar por l¨¢, porque era um lugar muito violento onde ¡°voc¨º entra, mas n?o sai¡±. Seu rosto e sua voz mudam ao ver as fotos dos predinhos coloridos onde ¨¤s vezes entrava. ¡°A troca era de sexo por crack.¡± Surpreende-se com as coisas que chegou a fazer para conseguir um pouco da droga. Um dos principais neg¨®cios dentro das miser¨¢veis pens?es era a prostitui??o. ¡°Principalmente de menores¡±, diz. Apesar da crueldade do lugar, conta que nem tudo era horr¨ªvel. ¡°Tinha pessoas, com suas hist¨®rias, e que n?o s¨® roubam. Muitos pagam sua doses fazendo trabalhos na rua, como reciclar lixo.¡±
Essas pens?es fecharam. Suas portas e janelas agora est?o muradas com blocos de concreto, e as hist¨®ricas fachadas foram grafitadas com s¨ªmbolos do PCC, como yin-yangs, palha?os e carpas. Os n¨²meros 1533 aparecem escritos por toda parte: ¨¦ a posi??o no alfabeto das letras de sua sigla. Por cima dos sobrados que permanecem de p¨¦ se ergue um implac¨¢vel guindaste. Levanta um enorme pr¨¦dio de apartamentos subsidiados atrav¨¦s de uma alian?a p¨²blico-privada. Na rua, os oper¨¢rios da obra v?o e v¨ºm enquanto os garis recolhem o lixo dos sacos rasgados por quem procurou algo. Uma mo?a descal?a e com roupa grudada ao corpo inspeciona o ch?o. Agarra um peda?o de entulho e o joga com for?a contra uma janela murada. V¨¢rias vezes. A poucos metros dali, um cobertor desaparece pelo buraco j¨¢ aberto em outra janela cegada.
Permanecer na rua
O primeiro que se nota ao cruzar a fachada de uma das antigas pens?es da Cracol?ndia ¨¦ o som de ¨¢gua corrente. No ch?o, canos quebrados regam o lixo e as roupas amassadas que levam ao labirinto de c?modos. Escadas com corrim?os de madeira, um retrato da virgem Maria e muitas moscas. Paredes abertas a marretadas seguindo o encanamento que n?o est¨¢ mais l¨¢. Portas com desenhos a l¨¢pis de palha?os e carpas. Beijos de batom. Telhados que deixam entrever o c¨¦u. Faltam as colunas que sustentam paredes, e parece que v?o desmoronar a qualquer momento. ¡°At¨¦ a estrutura eles arrancam para vender o metal¡±, diz um dos agentes da Guarda Civil que ilumina os sombrios quartos com uma lanterna. Ao fundo, ap¨®s v¨¢rios lances de escadas e uma sucess?o de espa?os sujos e queimados, h¨¢ um homem de barba branca e 57 anos. Numa m?o o cobertor; na outra, um peda?o de p?o.
C¨ªcero fala educadamente. Conta que chegou a S?o Paulo do long¨ªnquo estado de Alagoas antes de ler sobre a morte de Elvis. Era casado com uma mulher a quem chegou a amar mais do que ¨¤ sua m?e. H¨¢ dez anos, quando soube que ela o havia tra¨ªdo, n?o suportou. ¡°Deixei de me interessar pela vida, por trabalhar e ter responsabilidades.¡± N?o conhecia o crack, at¨¦ que experimentou essa forma de escape. ¡°Se eu parar, me lembro da vida de antes e n?o aguento.¡± ? a ¨²nica coisa que usa para esquecer, e, quando consegue, caminha e dorme onde calhar. ¡°Sabe qual ¨¦ o segredo para morar na rua? Nunca se misturar com os outros.¡± Vive sozinho e n?o quer ningu¨¦m. ¡°Nem para me acompanhar para comprar p?o.¡± Deixa o pr¨¦dio com os olhos chorosos e o p?o seco entre os dedos, seguindo as indica??es dos guardas. Penetrou por um dos pequenos buracos abertos para esquecer de tudo em um lugar tranquilo e seguro. C¨ªcero ¨¦ uma das centenas de pessoas que por enquanto n?o encontram seu lugar nos programas oficiais.
¡°Eles s¨® servem para 20%, e isso n?o pode ser uma pol¨ªtica p¨²blica.¡± Flavio Falcone ¨¦ psiquiatra e palha?o. Trabalha h¨¢ dez anos na Cracol?ndia com o nariz vermelho posto. ¡°N?o encontrei nada que estabele?a um v¨ªnculo t?o potente com essas pessoas¡±, afirma. Tirou 40 da rua em dois anos com seu projeto Teto, Trampo e Tratamento. Segue a conhecida estrat¨¦gia housing first (primeiro moradia), como o extinto programa De Bra?os Abertos do governo progressista de Fernando Haddad (PT), no qual trabalhou. ¡°O que o Estado oferece agora condiciona a casa ao tratamento. O acesso ¨¤ moradia ¨¦ inclusive uma a??o de sa¨²de, porque eles tomam banho todos os dias e dormem bem, algo importante para seu bem-estar f¨ªsico e mental.¡± Vestido com uma camiseta com os dizeres ¡°direito ¨¤ loucura¡±, o m¨¦dico-palha?o de 42 anos, morador da rua Helvetia, se queixa de que o modelo atual de S?o Paulo ponha a seguran?a p¨²blica em primeiro lugar. ¡°Querem expulsar estas pessoas daqui e mand¨¢-las para a periferia. Esse ¨¦ o objetivo por tr¨¢s do discurso de combate ¨¤s drogas.¡± O plano urbano de ¡°revitalizar¡± a ¨¢rea existe desde os prim¨®rdios da Cracol?ndia. ¡°O fluxo serve para desvalorizar os quarteir?es nos quais eles est?o de olho¡±, pensa Falcone. Revitalizar lhe parece uma express?o p¨¦ssima. ¡°Significa colocar vida, como se as pessoas negras e pobres que moravam aqui n?o estivessem vivas. ? um projeto urbano higienista e racista.¡± A maioria de seus vizinhos discorda e gostaria que os usu¨¢rios desaparecessem de algum jeito da porta das suas casas.
Os muros invis¨ªveis
¡°As vidas da Cracol?ndia importam¡±, gritam ao fundo. ? domingo ¨¤ tarde, e hoje se pode caminhar sobre o Minhoc?o, fechado para os ve¨ªculos. Falcone participa da manifesta??o contra abusos policiais na Cracol?ndia que vai a caminho da delegacia que fica atr¨¢s da rua Helvetia. Ao atravessar o fluxo, alguns se somam ¨¤ passeata. ¡°Delegado, torturador, a solu??o ¨¦ o cuidado e n?o a dor¡±, bradam em coro diante do 77.o distrito policial. Entre os manifestantes h¨¢ um rosto conhecido: Eduardo Suplicy, vereador pelo PT e eleito deputado estadual nas elei??es de outubro com a maior vota??o do estado de S?o Paulo. Economista e pol¨ªtico h¨¢ mais de 50 anos, aos 81 ele ainda n?o perdeu a vontade de lutar pelos mais necessitados. ¡°Formamos um grupo de trabalho atrav¨¦s das comiss?es de direitos humanos para estudar o que est¨¢ acontecendo exatamente com os usu¨¢rios de drogas e evitar que se exer?a tamanha viol¨ºncia contra eles como nos ¨²ltimos anos.¡± A dispers?o atual n?o lhe parece uma boa estrat¨¦gia. ¡°Deveria ter mais profundidade. Sei que n?o ¨¦ um assunto f¨¢cil porque s?o muitas as raz?es que levam algu¨¦m a consumir crack e outras subst?ncias.¡± Como senador, Suplicy foi o autor do projeto de lei que institui a renda b¨¢sica de cidadania, e isso lhe parece uma das vias mais eficazes para evitar que tantas pessoas acabem na rua. ¡°Um dia ela ser¨¢ universal e incondicional, e espero ver isso.¡± Argumenta que a viol¨ºncia contra os consumidores n?o vai resolver o problema, e sim o di¨¢logo com eles, moradores e comerciantes da regi?o. ¡°Em vez de incita??o ao ¨®dio, queremos mais pr¨¢ticas de amor¡±.
Mas as opini?es est?o t?o divididas quanto o pr¨®prio Brasil. ¡°Tem que pegar todos eles, coloc¨¢-los em um ?nibus e tranc¨¢-los ¨¤ for?a.¡± Para Ricardo, a solu??o est¨¢ clara. Ele ¨¦ taxista e percorre o centro diariamente. Os moradores tamb¨¦m n?o aguentam mais. Alguns elogiam o trabalho policial nas redes sociais, repetindo ¡°Caronte neles¡± e fazendo solicita??es diretas ao delegado Roberto Monteiro. ¡°Por favor, delegado, tire os usu¨¢rios da minha rua.¡± Outros decidiram pendurar cartazes de ¡°vende-se¡±. Os pr¨¦dios da regi?o se desvalorizam em meio ¨¤s altas torres de apartamentos de luxo que crescem entre eles. Abaixo, nas ruas, os usu¨¢rios de drogas se movem em grupo seguindo as indica??es policiais ou vagam sozinhos pelo centro de S?o Paulo. Ali sonham e choram, porque, embora alguns os chamem de zumbis, continuam vivos.
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